Flocos de Neve Aqui, Ali e nos Trópicos: democratizando as notícias internacionais do Brasil ao Equador
A máquina gigantesca da mídia convencional e ocidental mostra-nos quem é suficientemente articulado, realmente sofisticado, consciente e honesto para cumprir todas as demandas do jornalismo internacional. Tradução por Carlos Alberto Medeiros / Cultne.
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Em outubro de 2019, o presidente do Equador, Lenin Moreno, anunciou uma nova rodada de medidas de austeridade. Após o anuncio e o aumento previsto do custo de gasolina, diesel, transporte e alimentos, uma greve nacional, logo em seguida, transformou em protestos em massa. Eu estava no centro da capital de Quito quando a polícia, tanques, quantidades incalculáveis de gás lacrimogênio e todo o conjunto do aparato de segurança foram empregados contra os manifestantes.
Onze dias depois, com a morte de oito pessoas e a prisão de quase 1.200, segundo dado oficiais, o governo recuou. Os quíchua, shuar, secoya, a totalidade das 14 nações indígenas, incluindo os afro-equatorianos, os pobres e a classe trabalhadora – o povo, enfim, tinha vencido esta rodada. E eu, tanto quanto eu saiba, tinha me tornado a única pessoa de ascendência africana a fornecer um relato internacional dos eventos.
Notícias segregadas da mídia do Brasil
A hashtag #NewsroomsSoWhite [literalmente, Redações Tão Brancas], que já teve popularidade, apresenta uma boa avaliação dessa maligna. No Brasil, que abriga a segunda maior população de origem africana no mundo, superada apenas por Nigéria, a mídia elitizada com uma visão global a partir do Hemisfério Norte, se espalhou como cogumelos após uma chuvarada. Nesse grupo, incluímos o Intercept-Brasil, o Jacobin-Brasil, El País e Le Monde Diplomatique. A CNN Brasil foi inaugurada este ano.
Numa reportagem, Shasta Darlington – uma jornalista branca – da CNN abre sua cobertura com uma gravação em vídeo de jovens negros portando armas e vendendo drogas numa favela do Rio de Janeiro. Sua semelhança notável com a reportagem “The Guns of Chicago” [As Armas de Chicago], de Adriana Diaz para o CBN News on Assignment, é curiosa. A mensagem geral: jovens negros andam armados, sem camisa, são violentos, arrumados em gangues e pateticamente perigosos. Seu objetivo é o consumo popular, isento de valores. Nenhuma referência ao fato de o Brasil ser um dos países mais socialmente estratificados do mundo. Nenhuma menção ao êxodo, que perdurou por décadas, de seres vindos da Região Nordeste do país, fugindo ao mesmo tempo da seca e da degradação econômica, em busca dos pastagens verdes da cidade maravilhosa e São Paulo. Nenhuma reportagem comparativa sobre a Operação Calabar, uma investigação realizada em 2017 que levou 80 policiais militares do Rio de Janeiro à prisão por venderem munição e fuzis automáticos para traficantes, melhor dizer, comércio de varejo de drogas.
Um clip da CNN.
Quem não tiver cuidado pode confundir a reportagem de Darlington com uma matéria promocional exaltando a atual militarização do Rio de Janeiro. Por que não? Como me disse uma menina de seis anos no Parque Carolina, em Quito: “Todos los negritos son ladrones” (Todos os negros são ladrões). Na dúvida, e absolutamente certa de minhas faculdades auditivas, fechei a cara e perguntei: “Você falou o quê?” Olhando-me nos olhos, ela me respondeu com insolência: “Todos los negritos son ladrones.” Com efeito, a reportagem de Darlington é tão opaca quanto desagregadora, um estudo de caso bem flagrante sobre a cobertura segregada da mídia internacional e seu menosprezo pelas perspectivas globais.
Enquanto isso, o jornalista Glenn Greenwald, ganhandor do Prêmio Pulitzer, encarregou-se de defender a “democracia brasileira.” Sei lá o que isso signifique. Só sei que para nós que falamos português, isso significa ter de aguentar sua enunciação robótica de uma língua que, apesar de tudo, é bela. Não que o tupí-guaraní tenha menos valor e beleza. “Nós não falamos português, nós cantamos,” disse-me uma vez um artesão do Pelourinho, no centro histórico de Salvador.
A cobertura de Greenwald atraiu para si a raiva da direita, até mesmo alguns socos de Augusto Nunes. Sua dedicação a revelar como Sérgio Moro conspirou juntamente com outros funcionários de alto escalão para condenar o presidente mais popular e exitoso que o Brasil já teve, Luiz Inácio Lula da Silva, é inquestionável. Em troca, Bolsonaro convidou Moro para servir como seu Ministro da Justiça dias depois de “ganhar” a presidência. Depois de sair da lista da fome das nações Unidas e de milhares terem saído da pobreza durante o governo Lula, o Brasil fazia uma drástica guinada para um futuro de perdas.
Apesar da defesa de Lula por Greenwald, não se pode ignorar que seu trabalho se dá numa zona de privilégio. No atual cabo-de-guerra polarizado entre esquerda e direita, apoie o fascismo ou à democracia – é um desafio à imaginação lembrar um único dia em que o Brasil tinha o status de democracia – vozes na perifericas caem no vazio. Os binários em atuação não registram seus sinais.
“Vocês também têm negros?” é uma pergunta atribuída ao ex-presidente americano George W. Bush. Mas Greenwald também parece ter se esquecido de que vive num país em que os negros não apenas são maioria, mas possuem meios e habilidades para manterem seu próprio jornalismo internacional. Esse fato é apenas um adendo para o grupo das potências midiáticas progressistas que operam nos trópicos: a máquina gigantesca da mídia convencional e ocidental mostra-nos quem é suficientemente articulado, realmente sofisticado, consciente e honesto para cumprir todas as demandas do jornalismo internacional. Nessa visão, as pessoas de cor, de maneira geral, e os negros em particular carecem das habilidades para assumir esse papel.
Infelizmente, os meios de comunicação progressistas brasileiros não se saem melhor nesse quadro. O conselho editorial e os correspondentes internacionais de veículos como Brasil 24/7, Carta Capital, Brasil de Fato e Pragmatismo Político, para citar alguns, mostram que suas equipes são tão excludentes quanto o gabinete de Bolsonaro, um tema a que eles se opõem fortemente. Colocar um espelho diante de seu ministério apenas reflete a condição monolítica e péssima do jornalismo.
Democracia Racial x Realidade
No ano passado (2019), a polícia do Rio de Janeiro estabeleceu um novo recorde: pelo menos 1.546 pessoas foram mortas por agentes da lei. Pelo menos, enfatizo, porque a contagem de corpos, segundo o Instituto de Segurança Pública, foi feita entre janeiro e outubro daquele ano. Jovens negros foram a maioria das vítimas. Será que o nome de Ágatha Félix, de nove anos, lhe soa familiar? Morta com um tiro nas costas disparado por policiais que invadiram a favela do Complexo do Alemão em 20 de setembro de 2019, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, atribuiu publicamente sua morte a pessoas que “fumam maconha.” Daniel Loyoza, membro da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, comentou: “Quanto mais o Estado mata, mais atinge as pessoas mais vulneráveis. Nesse grupo se incluem os jovens pretos favelados.”
Em 2017, o Brasil havia quebrado outro recorde. Dados do governo registraram 63.880 homicídios, número que supera as fatalidades em países em guerra. A despeito desse banho de sangue, o país segue se mimando ao rótulo de democracia racial. Introduzida no imaginário popular na virada do século XIX, democracia racial implica que a miscigenação entre indígenas, africanos e europeus produziu uma sociedade livre do racismo institucional ou trivial. Conceitualmente responsável por manter uma sociedade hiper-estratificada, ele tem sistematicamente excluído e mantido os negros na extremidade inferior do totem socioeconômico. Na política moderna, as poucas exceções – Marielle Franco, Talíria Petrone, Benedita da Silva, Áurea Carolina – só confirmam a regra. As exceções são ainda mais escassas na mídia internacional.
Em setembro de 2018, Geysson Santos pegou o microfone do Hip-Hop sem Maquiagem, um podcast apresentado por Allison Tiago e produzido na periferia de São Paulo que entrevista militantes negros frequentemente. Ele não poupou palavras, atacando a isolada classe alta e a democracia racial brasileira. “O papel que a esquerda pretende representar,” ele enfatizou, “não é suficiente porque eles se distanciam das comunidades periféricas.” Ele apontou que os partidos de esquerda tradicionais surgiram, basicamente, de movimentos de estudantes universitários ou sindicatos de trabalhadores. Sejam de direita ou de esquerda, as diretorias de ambos os tipos de organizações continuam dominadas e controladas pela minoria branca privilegiada do Brasil.
Santos enfatizou que, em função de sua composição demográfica, os tradicionais partidos progressistas e de esquerda se distanciam das próprias comunidades que pretendem ajudar. Em sua avaliação, esses partidos políticos “não refletem nossa imagem e nossa militância quotidiana… há vícios (nos partidos e sindicatos)… é difícil para nós das comunidades periféricas desempenhar um papel ativo (nos partidos e sindicatos)… da forma que a esquerda foi criada no Brasil, o Brasil mesmo, estabelecido por meio do racismo extremo e da burocracia. Torna-se, assim, um campo de batalha dentro dos campos de esquerda e progressistas para discutir temas envolvendo nossa juventude, o genocídio praticado conta a juventude negra.” Em resultado, conclui ele, “outras estruturas se organizam.”
Consignado à periferia, forçado a construir “outras estruturas” como definiu Santos, os veículos da mídia negra independente no Brasil têm atraído um número significativo de seguidores em seus websites e plataformas. Ainda assim, veículos como Alma Preta, Correio Nagô, Notícias Pretas, Hip-Hop sem Maquiagem, Acervo Cultne e outros carecem dos recursos e, consequentemente, do alcance estrutural disponíveis a seus competidores e supostos aliados. Isso inclui (embora não se limite) a falta de verbas, até mesmo para pagar salários a redatores e membros de equipes; pesquisa; reportagens atuais e investigativas; viagens; alimentação; e outros aspectos essenciais da profissão. Diferentemente do Intercept, que teve Greenwald como um de seus fundadores e é bancado por Pierre Omidyar (fundador do eBay), um bilionário-tech, os veículos de mídia supramencionados operam com orçamentos baixos ou inexistentes. Enquanto isso, os salários do Intercept “são muito maiores que o de outros veículos de centro-esquerda, sem fins lucrativos”, segundo matéria publicada em 2019 pela Columbia Journalism Review. Em 2015, Greenwald ganhou US$ 518.000 e, em 2017, o Intercept, classificado como instituição sem fins lucrativos, pagou US$ 9,3 milhões em salários. Com efeito, “sua generosidade pode forçar o lado não-lucrativo da empresa a abandonar, perante o Imposto de Renda, sua condição de instituição de caridade e reclassificar-se como fundação privada.”
Mídia internacional a favor de quem?
Antes de fazer as malas e viajar para o Equador, um negro me perguntou: “Existem negros no Equador?” Esse homem, um empresário, era mais velho do que eu e sua indagação me causou grande curiosidade, para dizer o mínimo. Alguns segundos se passaram. Ele havia adicionado a sua pergunta um senso de inocência e ingenuidade. Finalmente respondi. A pergunta ficou firmemente gravada em minha cabeça: “Existem negros no Equador”
A mídia é uma extensão do trabalho pedagógico. Ambos são de importância estratégica para qualquer povo, comunidade ou nação. As pessoas pretas e pardas, contudo, foram e continuam sendo marginalizadas em frente e atrás das lentes da mídia ocidental. Deve-se entender bem que ao basear nossa compreensão do mundo nesses veículos midiáticos geralmente imobiliza qualquer ato de solidariedade internacional. Da Fox News ao Intercept Brazil, da CNN ao Brazil 24/7, da direita à esquerda e de volta à direita, essa câmara de eco da branquitude têm tornado ainda mais invisíveis as narrativas dos pretos e pardos.
A falta de diversidade na mídia não é, de modo algum, um fenômeno natural. Não é um erro do criador que, agora, corpos brancos devem corrigir cientificamente. Recai em nossas mãos, nas minhas e nas suas, a responsabilidade de assumir os domínios de nossas histórias a fim de ampliar as perspectivas globais. Ao fazê-lo estamos, acreditemos ou não, estendendo a mão da irmandade e da solidariedade na diplomacia e nas relações internacionais. Se formos omissos, guiados apenas pelo carreirismo, alheios ao zelo de cidadãos mundiais, vamos ignorar a existência de mais de um milhão de afro-equatorianos. A maioria vive na província de Esmeraldas e no Valle del Chota, tão segregados pela classe dominante quanto um jovem negro do Complexo do Alemão no Rio de Janeiro. Em última instância, nosso conhecimento dos eventos e assuntos do mundo seguirá condicionado a uma mídia segregada e, consequentemente, reprimido por ela.